Alugado

Seis da manhã e o sol já brilhava forte na copa dos arvoredos. Os meninos do orfanato já estavam enfileirados, no pé da cama, esperando pela autorização das freiras para irem tomar banho. Todos menos dois: Kurt e Corey, que corriam desesperadamente em direção à janela pra saber se o pátio já estava enxuto da chuva da noite passada.


- KURT! COREY! SUAS PESTES! EM FILA! AGORA!
- Ah, irmã! Aula agora? O sol lá fora tá tão legal pra gente brincar...
- Irmã, deixa só a gente brincar. Não vamos contar pra ninguém, eu juro! A gente desconta a aula de hoje em dever de casa, pode ser?
- Vocês querendo me barganhar... Vão agora os dois pro banheiro e lavar essas orelhas antes que a Madre as veja e as puxe! Vamos, meninos! Agora!
- Irmã, por favorzinho! A senhora sabe que eu gosto tanto da senhora...
- Não vou repetir, Kurt: PRO BANHO OS DOIS! JÁ!
E quem disse que tomaram banho? Conseguiram despistar a Irmã e correr para a sala de brinquedos, ainda sem ninguém àquela hora. Mal puderam ver o rosto que puxava suas orelhas. A Madre Superiora já estava cansada dessa mesma rotina.
- Corey, para o banho já! Kurt, venha comigo.
- Mas  Madre, foi ele quem me...
- Kurt! Comigo!
A mesma sala com cheiro de mofo invadia o pequeno nariz. Suspensas, as pernas balançavam, enquanto o menino de dez anos fitava, sem medo, a pessoa mais poderosa que ele conhecia.
- Você sabe porque está aqui?
- A irmã Dulce quem sempre me castiga. Vai ser a senhora agora?
- Não Kurt, claro que não. Acaso não lembra da última vez em que esteve aqui?
- Foi quando vieram aqueles senhores; que não deu tempo nem de eu ver, não é? Os que iam me alugar?
- Alugar, Kurt? Como assim?
- Sim! Não é isso? Quando alguém compra alguma coisa e devolve depois?
Um silêncio seco cortou a alma da Madre Superiora. Sabia como a burocracia tinha barrado o último pedido de adoção do Kurt. Não foi algo proposital do casal, mas é difícil explicar isso para uma criança... Avisaram-no na época, há quase um ano, mas não ter visto os candidatos, de certa forma, ajudou para que a dor do pequeno coração do garoto não fosse tão grande.
- Kurt, meu filho. Não é assim. Nem sempre uma adoção dá certo, e você sabe. Não que tenha sido um "aluguel", ou porque você não tenha sido bom o suficiente - muitos meninos pensam isso - mas porque os planos de Nosso Senhor são muito mais complexos do que você pode imaginar!
- Não precisava ser tão complicado. É só pegar uma mamãe e um papai e me dar de presente de aniversário! Simples! Ele tá chegando...
- Kurt, meu filho. É sobre isso mesmo que queria falar com você. Tem um casal que está interessado em você. E me parece que está dando tudo certo, meu filho! Eles podem, sim, adotar você e se tornarem seus pais.
O coração do menino se encheu de esperança, mesmo que insólita. Desilusões esperançosas são mesmo comuns aos órfãos. Eles tem a inocência dentro de si, mas não o abrigo para protegê-la.
Irmã Marcella não estava no prédio e só voltaria à noite, depois da visita do casal. Não poderia acompanhar esse momento importante para Kurt por razões superiores. Na falta dela, contaria ao seu único amigo. Kurt correu e, assim que chegou na sala de aula, viu a Irmã Dulce puxando a orelha de Corey.


Ao fim da aula, já pela tarde, toda a turma já imaginava o motivo da saída de Kurt e o seu sorriso estampado; inclusive os garotos que não eram muito seus amigos. Estavam todos no playground, mesmo molhado da chuva.
- E ai, Kurt? Apareceu algum desocupado cego pra te adotar? Legal que o prédio vai ficar mais limpinho sem você... - A pequena gangue se aproximou dos dois, como sempre fazia. Eles insultavam e batiam em garotos menores, como eles.
- Cala a boca, Scott! Você tá com inveja do Kurt! Isso sim!
- Vai embora, Kurt! Deixe o "CorGAY" que a agente cuida de bater nele todo dia... E espero que dessa vez eles não te devolvam antes mesmo de comprar. O produto é ruim mesmo...
- CALA A BOCA, SCOTT! VOU TE MATAR!
Kurt não aguentou a ofensa. Pegou o garoto sem se importar com o muro de quatro meninos que o protegiam. Esqueceu-se de que tinha que se arrumar pra ver os novos pais: só queria bater naquele menino que era a última coisa ruim daquele lugar. Corey era pequeno demais para se meter: só chorava. Os outros meninos olhavam e incitavam. Em pouco tempo Kurt não tinha mais defesa: estava no chão, apanhando de cinco meninos maiores do que ele; todos repletos de lama.
- SOLTEM-SE AGORA! TODOS VOCÊS!
A voz rouca e cansada da Madre Superiora ecoou em campo aberto. Os garotos ensopados de lama só conseguiram saltar para trás, enquanto Kurt se esgueirava no chão em posição fetal: quebrado, doído e cansado. Seriam todos castigados, mas não havia tempo: a família que Kurt precisava já o esperava no prédio.
- Desculpa, Madre. Desculpa. Tô todo sujo...
- Vai tomar banho ou vê-los agora? Dos dois modos, eles o verão mal.
Estava ansioso demais para sair dali. Queia logo ver seus salvadores.
- Tô pronto.
A Madre o levou, mesmo receosa, para a sala de convivência. Eles o esperavam.


Mas logo o sorriso se desfez ao ver o tão esperado menino todo molhado e sujo.
- É ele? - Um tom de desaprovo tomou as feições da mulher.
- Oi. Meu nome é Kurt e tenho dez anos. Prazer em conhecer vocês. Gosto de jogar bola, jogar videogame e ver desenhos. - Uma fala que programara mostrou os resquícios de esperança nos olhos receosos e envergonhados de Kurt. O homem parecia ser o único que ouvia atentamente. Não houve muito contato no tempo em que ficaram juntos. Os olhos da mulher já diziam seu resultado, já deixando a Madre preocupada.
- Cara, foi legal conhecer você, mas a gente tem que ver direitinho como vai ficar. É difícil adotar, sabia Kurt?
- Sim, eu sei...
- Espero que a gente se veja de novo!
- Espero que encontrem um filho legal...
- Mas...
- Vamos, Eric! E boa tarde, Kurt!
Eles saíram apressados, enquanto Kurt olhava da janela o lamaçal do playground. Pode até ouvir um "Vocês não tem meninas? São bem mais comportadas e melhores de educar, sabe...", vindo do corredor.
A porta se abriu em súbito. Era a Irmã Marcella, que correu ao encontro do garoto para lhe dar um abraço forte.


- Kurt, meu filho. Como você está, meu querido?
- Tô bem Irmã. Tô bem. Vou ficar mais tempo com a senhora. Isso não é legal? - Disse isso enquanto uma lágrima caía no rosto, clandestinamente.
Nem o carinho daquela que mais se aproximava de uma mãe afagou sua dor. Nunca seria adotado, não só pelo que fazia, mas pelo que o mundo o reservava. Restava-lhe apenas ser forte e aprender a contar com os próximos, seus únicos bens.
Corey já dormia profundamente; não chorava mais por causa do castigo. Kurt dormiu segurando o carrinho que ganhara da Irmã, pensando que nunca deixaria um filho seu sujo de lama e sozinho de pai.

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