Queda

Kurt corria tão rápido e atrapalhado que se via caindo, com suas pernas finas e o chão tão perto de si. Caiu, de fato. Ralou o joelho e o cotovelo, mas não chorou: homem não chora. Até gostou de ter se machucado mais ainda. Seria a desculpa perfeita para os machucados que conseguira minutos antes.
- Ah, meu Deus! Kurt! Você está sangrando!
- Tô bem, irmã Marcella! Tô indo na enfermaria, ok?
- Eu te levo, bebê. Não quero você pegando uma infecção por causa desses ferimentos.
Kurt nunca tivera uma mãe, mas pra ele uma mãe deveria ser mais ou menos o que a irmã Marcella era. Ela dava um pouco mais de atenção a ele que aos demais, e se sentia feliz por isso: ela e Corey eram as únicas coisas boas daquele lugar.
Ao chegar na enfermaria, a irmã percebeu mais ferimentos que os eminentes na queda.
- Onde você conseguiu isso, Kurt?
- Na queda, não?
- Você não caiu com a testa no chão. Eu vi! E hematomas assim não são de quedas, e sim de socos. Agora me diga: onde você conseguiu isso? Quero ouvir da sua boca!
- Eu tava sozinho, irmã. Os meninos me pegaram e não consegui me defender.
- E por que você deixou, Kurt? Você não tem mais 8 anos. Já é grandinho pra se defender.
Kurt escondia o rosto de vergonha. Só não podia esconder as marcas da violência de Scott e seus amigos.
- Era eu ou o Stefen, irmã. O Corey ajudou ele a correr, enquanto eu distraía eles. Não acho justo um menino de quinze anos bater num de sete. O mais justo seria baterem em mim.
A irmã não podia fazer muito. Só pode abraçá-lo. Não sabia se ficava triste por tudo que o pequeno garoto sofria ou se ficava alegre pelo senso de justiça e honra que ele adquirira com os anos.
- Tenho muito orgulho de você, Kurt. Olha, pensando sempre assim, no bem daqueles que preza, você vai longe... Será um grande homem!
- Sei não, irmã. Não sei o que vou ser depois que sair daqui.
- Não importa o que você seja, Kurt, nem qual profissão siga ou onde você more: será um grande homem. Honrado e bom, como Deus te fez.
- E a senhora acha que Deus olha por mim, irmã? Como os caras da Bíblia?
- Claro que sim! Ele olha por todos nós!
Kurt se levantou, exaltado. Mas antes que alterasse a voz, viu os olhos doces da irmã fitando-o. Não poderia ser indelicado.
- Então por que ele esqueceu de mim aqui, sozinho? Não tenho pais, não tenho casa, não tenho nada! Não sei nem o porquê de ter que rezar todos os dias, se Deus não passou pro lado de cá do muro!
- Não diga uma heresia dessas, Kurt Mustaine! - A voz quase autoritária da irmã calou o garoto, ainda com olhar rebelde. Os dois acalmaram-se, respirando fundo.
- Kurt, lembra-se da história de José?
- Do Egito? Sim.
- Deus esteve com ele o tempo todo, em longos e longos anos. Foi desprezado pelos seus, injustiçado e preso. Mas, no fim, conseguiu o seu galardão. E por que você acha que não pode conseguir o seu?
- Porque eu não tô na Bíblia! E não sou nenhum santo.
- Posso confessar uma coisa? Ninguém é. Todos temos pecados.
- Até a senhora? - Kurt arregalou os olhos. Não imaginava a irmã cometendo qualquer erro. Ou mesmo lendo revista de mulher pelada, como ele fazia. Tratou logo de tirar aquele pensamento de sua mente.
- Sim! Cada um tem os seus erros pessoais. Mas o que nos faz próximos de Deus é o empenho com que queremos correr pra perto dele ao longo da vida. E pra isso, você pode saber todas as orações e rezar a todos os santos, mas se não fizer isso com amor e fé - a Deus, a si e ao próximo - nunca ficará próximo dele.
- Então...
- Então levante-se. - Disse a irmã, ao levantar-se da cadeira ao mesmo tempo que o garoto. - Faça a sua vida coma honra e bondade que estão no seu coração. Ai você vai ver que Deus ficará bem pertinho de você, nos bons e nos maus momentos.
Kurt não sabia muito o que pensar. Todo aquele sermão simples - tão diferente dos sermões do padre e da madre, tão entendível - se embaralhou em sua cabeça: era algo a ser aprendido, e não decorado.
- Os anos o ensinarão a entender essas minhas palavras, Kurt. E a vida o ensinará a ter fé.
O bom dos sermões da irmã era que sempre ganhava um cafuné no final. Já estavam bem grandinho pra eles, mas sentia-se bem com o sorriso cálido da freira.
- O que a senhora acha de eu ser músico, irmã?
- Que ótima ideia, Kurt! Mas por que músico?
- Pra viajar muito, como os caras das bandas de rock.
- Onde você tem ouvido rock, senhor Kurt Mustaine? - A freira falava, incrivelmente, em tom de repreensão e felicidade.
- Eu disse rock? Eu disse coral da igreja, irmã!
- Pois vá agora mesmo pra sala de música pegar aquele violão e ensaiar mais um pouco. Pra tocar NO CORAL DA IGREJA, okay?
- Então eu posso ensaiar mesmo fora das aulas de música?
- Se não for na hora de alguma aula ou missa... Pode sim.
Um grito de vitória seguiu um pulo do garoto e um beijo na bochecha da freira. Esqueceu as gazes e saiu correndo de novo, animado como poucas vezes ficava em dias de inverno. Enquanto tivesse quem amava por perto, nunca seria fraco. Decidiu em sua mente e em seu coração: não seria mais fraco.

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