Ambrosia

Um mês de trabalho, um mês de pagamento e Kurt já pode alugar um apartamento e faz planos de, no próximo mês, fazer um financiamento de um carro.
Não passou muito tempo no depósito. O trabalho no Órbita era até bem simples: variava entre evitar "deselegâncias" [segundo Olívio] e exposições de vampiros dentro da boate, até brigas e entrada de bebidas, drogas e armas na portaria. No mais, não teve muitos contratempos.
Mas Kurt não trabalhava só na boate. Fazia alguns "serviços extras". Investigação, infiltração, todo tipo de coleta de informações que interessassem ao senhor Olívio sobre obscuridades suspeitas do mundo sobrenatural. E era nisso que vinha o seu gordo salário.
Mas ainda se sentia só. Mesmo com a agenda do Marco, mesmo com as risadas dos novos amigos, mesmo com a mente ocupada, ainda lhe faltava o pequeno Rick. Jamaica não lhe dera informação nenhuma sobre túmulo dele e de Nancy, ou mesmo se foi encontrado. Tinha que perguntar a alguém se poderia ajudá-lo. Senhor Olívio? Nunca iria perder o tempo dele com um peão. Marco e Alefe, melhor não interromper a farra deles... Era pausa pro jantar, no meio da madrugada. E lá estava Caterine, na copa, comendo com os simples mortais. Hoje, loira.
Ela não era dada a frescuras, como outros Arcadianos (Olívio). Não tinha medo de ficar no meio dos peões ouvindo todo tipo de conversa porca. Mas ao contrário, todos a respeitavam e se seguravam nas palavras; e Kurt não era diferente.
Hoje iria falar com ela. Hoje não iria ter vergonha.
- Boa noite, dona Caterine.
- Já falei pra você parar de me chamar de dona! Vou levar isso como ofensa, tá?
- Desculpe, Caterine. Posso... Posso...
- Sente-se aqui! Está vago.
Kurt deixou a bandeja, foi de novo à cozinha e pegou talheres.
- Você vai comer hambúrguer com talheres, Kurt?
- Ah, por que não? Eh... Sempre faço isso.
Ela percebeu a mentira quando viu o desespero dele estampado no olhar. Comer qualquer coisa de talheres, tudo bem. Mas hambúrguer já era demais pra ele.
Caterine não pode conter o riso quando viu seu subordinado desistindo e comendo com a mão.
- Não precisa dessa cerimônia comigo.
- Desculpa.
- E quando você vai parar de pedir desculpas pra mim a cada 9 de 10 palavras?
- Quando conseguir um favor da senho... de você, Caterine.
Os profundos e fixos olhos azuis de Kurt pareciam entrar na alma de Caty, que parecia desconfortável ao ponto de procurar algum defeito no cabelo.
- E... o que seria, Kurt? Se... estiver ao meu alcance, eu ajudo.
- Mas não posso falar aqui. Sabe, é meio particular. Bem pessoal mesmo. Eu poderia passar na sua casa amanhã à tarde, antes do trabalho?
- Eh... Claro que pode, Kurt! Passe lá amanhã! Vou estar esperando.

Kurt era quase um cavalo. Dificilmente ficava doente. Mas a teoria de Murphy, da qual Marco tanto falava, se encaixava muito bem. Justo quando precisava ir na casa da chefe, fica doente. Podia até perder o dia de trabalho, podia até perder o emprego!
Ligou pra sua chefe pra explicar. Só não esperava que ela fosse bater à sua porta.
- Boa noite, Kurt. Tudo bem?
Ela estava linda. Sua pele reluzia sob a luz do sol e seus olhos estavam ainda mais azuis. Era um esforço ela sair à tarde: Arcadianos não saem de dia. E tudo isso pra quê? Pra ver o marmanjo doente vestindo uma cueca e enrolado num edredom, espirrando como um bode?
- Não precisava você ter vindo aqui.
- Ordens expressas do Olívio. Vim cuidar de você. - Disse ela, entrando e já se instalando.
- Sério?
- Não unicamente. Deite-se, descanse, que eu vou fazer uma sopa pra você. Depois conversaremos sobre aquele assunto pendente que você disse ter comigo.
- Mas não precisa...
- Nada de "não precisa". Vá pra cama.
Kurt estava encantado. Até suas ordens eram suaves. Tomou toda a sopa e dormiu. E como dormiu... Dormiu como não dormia há muito tempo... Mas, como sempre, acordou em súbito, como todos os dias depois de San Quentin. Seus horários estavam malucos e sua cabeça ainda respirava o cheiro das celas. Ainda estava desnorteado.
- Kurt, calma! Está tudo bem?
- Tô bem. Tô bem, Caterine... Desculpa. Era pra você estar no Órbita agora.
- De novo me pedindo desculpas? Deixei um administrador no meu lugar. Não disse que cuidaria de você?
Um segundo de olhar precedeu o riso mútuo. Ele voltou a deitar-se.
- Pode me falar agora?
- Caterine, é que... Não sei por onde começar. Não sei se você sabe da minha história, mas eu tive um filho e uma esposa. Quando... quando eu fui preso, eles sumiram. Não sei o que aconteceu. O Jamaica não achou nada mas... Não sei onde eles estão entenrrados.
- Não sei se sua esposa Nancy está enterrada, mas seu filho não.
- O que disse?
- Kurt, eu sei da sua história. Mais até do que gostaria... Olívio pediu uma investigação sobre o seu caso e constatamos algumas coisas. Seu filho está vivo.
- Você deve estar brincando. MEU FILHO TÁ VIVO?
- Sim! - Caterine falou timidamente, enquanto via o homem doente, conseguindo força sabe-se lá de onde, pra comemorar.
- MEU FILHO TÁ VIVO! MEU RICK TÁ VIVO!
A felicidade era tamanhao que parecia querer explodir o coração do Kurt. Não podia se conter. Esqueceu-se da fraqueza e agarrou Caterine com tudo que tinha; pulou com ela nos braços, enquanto ela sorria.
- Caterine! Obrigada! Meu filho! MEU PEQUENO RICK!
Quando o cansaço veio, percebeu a falta de respeito que cometera. Tentou soltá-la, mas seus olhos o enfeitiçavam. Não conseguia parar de olhar para aquela criatura divina. Via também os lábios de Caterine querendo se mover, mas sem sucesso. Os dois corações estavam acelerados.
- Kurt, eh... tem... tem mais da... da história... mais informações que... que conseguimos.
Ele não conseguia ouvir. O seu cheiro fresco, de fruta, o estava embriagando. Fruta madura, fruta tropical, algo novo pra ele, assim como o que estava sentindo. Ela não pode mais falar também. Parecia ansiar a boca dele tanto quanto ele a dela. Não pode mais aguentar muito tempo: sua boca pequena o chamava.
E que beijo sufocante, que beijo profundo, que beijo desesperado. Como se suas almas estivessem esperando por isso pra se completarem. Ela era doce, e isso deixava Kurt cada vez mais com sede de sua boca. Apertava Caterine. Suspirava, gemia, como uma simples humana, mas ainda divinamente linda.
A febre da doença de Kurt estava indo embora a cada gota de suor. Ela suava também. As roupas logo foram embora.
Kurt conseguiu parar, vendo-a. Caterine não tinha o corpo de uma menininha, e talvez por isso estava nitidamente envergonhada. Em sua mente, Kurt continuava a vê-la como um ser perfeito, em cada curva, em cada poro.
Como poderia estar ali? Ele, doente, pobre, peão, ex-presidiário, cheio de traumas e problemas, sujo de mente, alma e corpo? Não era digno de ouvir seus gemidos de prazer. Ela também teria marcas? Ela também era tão humana quanto ele? Quem sabe os dois deveriam consolar-se de suas mágoas, um nos braços do outro, juntos num beijo e na união dos corpos perfeitamente encaixados.
A cada movimento forte, mas carinhoso, uma ambrosia a ser deleitada.
Há muito tempo Kurt não se sentia feliz assim. No auge do prazer, seus olhos se fixaram. O céu estava próximo de si de novo. A constatação de que Deus não o deixou morrer no lixo pra viver aquilo lhe fez sorrir. E abraçou Caterine com tudo o que tinha, até os dois dormirem de cansaço - ele, ainda por ter tirado forças de onde não tinha. Ainda encaixados, seus corpos se aqueciam. E puderam, os dois, em muito tempo, sonhar.

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