Adoção

Corey corria desesperado pelo salão. Seus pequenos pés eram ouvidos ao longe, e reconhecidos por Kurt, que estava, incrivelmente, estudando na biblioteca.
- KURT! KURT! KUUUUURT!
Corria tanto que, ao parar, quase cai por cima da mesa do amigo.
- Cara, o que foi? Vai dizer que o almoço hoje é Big Mac? Por que essa alegria?
- Cara, é um milagre! - Disse Corey, com os olhos enchendo de lágrimas de felicidade.
- CARAMBA! SÉRIO? TEM COCA COLA TAMBÉM?
- Não, Kurt! Isso é sério! Me ouve!
- Tá! O que foi? Fala logo. - Kurt cruzou os braços, com a impaciência pré-adolescente que é peculiar. Foi o tempo para Corey respirar fundo.
- Fui adotado, cara! Fui adotado!
Alguns segundos de silêncio pareceram horas. Kurt não saia o que pensar. Feliz por seu amigo ter conseguido o que poucos de lá conseguem: um lar? Ou triste porque, a partir de agora, estaria só?
- O que foi? Você não tá feliz por mim não, amigão?
- Não, cara. Tô muito feliz! Sério, Corey: parabéns! Mas, é certo mesmo?
- Acabei de vir da sala da Madre. E eles já estavam lá! Gostaram de mim e vão ficar comigo! Vou ter até uma irmãzinha, sabia? Vou embora amanhã... - Foi só Corey ouvir a si mesmo falando essas palavras, que lhe veio tristeza na voz ao ver o rosto do amigo.
- Que massa, Corey! Tu vai ser muito feliz!
- E você vai ficar aqui... Será que eu posso te levar com você? Será que eles deixam?
- Deixa de viagem, cara. Mas é claro que não! Já é difícil um menino de 10 anos, como você, ser adotado. Imagine eu, com catorze! Não rola!
- Mas... Você vai ficar sozinho?
- Tô com Deus. E tô comigo mesmo. Vou ficar bem. Agora vamo arrumar as suas roupas? Ou será que eles são tão ricos que você nem vai precisar?
Kurt ajudava o amigo tão alegremente que parecia até que ele tinha sido adotado. Não poderia estragar a felicidade do amigo com a sua previsão de solidão.

San Quentin, 15 de maio de 2038.

Porque a fome vem rápido

Estava sozinho. Só tinha 5 dólares no bolso e uma barra de chocolate pela metade. E isso não duraria até poder voltar pra Montgomery.
Voltar? Tirou aquele pensamento da cabeça. Não voltaria como um derrotado; ser motivo de chacota e apanhar mais do que o de costume. Voltaria, um dia, pra dar orgulho à Irmã Marcella, mas não agora; não sem achar o Corey.
"Mas será que ele quer ser achado?" Pensou Kurt. Ninguém se muda rápido assim, em meses, sem nem avisar...
Economizou o chocolate até a noite, quando a fome gritava. Mal sabia atravessar aquelas ruas largas. Andou pelas ruas sem destino, sem conhecer nada. Quem sabe um outro orfanato? Quem sabe alguma senhora caridosa? Quem sabe o mundo não fosse tão cruel?
Já era tarde e não tinha lugar para dormir. Foi à uma pensão.


- Cadê seus pais garoto?
- Não tenho, senhora.
- Ah, então é moleque de rua? Saia daqui antes que...
- Senhora! Eu só quero um quarto! Tenho dinheiro!
- Roubou de quem, menino?
- Não roubei, senhora. trouxe de Montgomery, Alabama. Estou procurando um amigo e queria ficar aqui só por hoje.
- Hum... São 40 dólares a diária.
- QUARENTA?
- SE NÃO TEM, VÁ EMBORA!
Não poderia fazer nada além de sair dali. Não sabia onde iria dormir. Resolveu procurar uma estação de trem, pagou 1 dólar e ficou num mesmo vagão por várias estações, esperando cada passageiro tomar o seu rumo, até ele ficar completamente vazio para dormir debaixo do banco.
Pela primeira vez sentira o desconforto de um chão frio e duro. E a tristeza de dormir uma noite sem o beijo na testa da irmã Marcella.
Não dormiu muito. Acordou com xingamentos do guarda. Quase seu pé o alcançou num chute.
Pegou sua mochila quase vazia e correu, correu, correu sem rumo. Correu mais rápido que a mais rápida das fugas pra não apanhar. Correu muito: tanto que não via mais os prédios. Correu e não viu pra onde ia, com a vista turva das lágrimas. E ai corria mais, pra que ninguém na rua percebesse que ele chorava. Pra que ninguém na rua o percebesse.
Era agora um dos meninos invisíveis das grandes cidades. Sem família, sem casa, sem carinho.
Parou num subúrbio, perto de um bueiro, onde ninguém poderia expulsá-lo.


Preferiu não pensar muito no seu futuro - se continuaria vivo, se a vida daria uma chance -. Pensou que teria que sobreviver. E que não tinha tempo pra chorar, porque a fome vem rápido...

"... o pão nosso de cada dia nos dai hoje..."

Carniçal

O que Kurt via não parecia ser real. Não via diferença nenhuma entre Caty dos anjos de seus sonhos. Era mais linda do que costumava ser: ali, na sua frente, em sua forma de verdade.
Tinha cabelos tão loiros que pareciam reluzir em branco. Seus olhos, de um verde sobrenatural, pareciam mais profundos e transparentes que qualquer água virgem.


A cada centímetro que via de seu corpo, cada peça a menos, parecia tão alva e brilhante, mais bela do que nunca a vira nos últimos dias. Parecia até que não tivera decorado cada parte do seu corpo. Suas curvas estavam mais acentuadas, redondas e, por incrível que pareça, "humanamente sobrenaturais".
Não era mais uma menina, mas até suas imperfeições faziam Kurt adorá-la mais, acentadas pela beleza emanada de sua pele de Arcadiana.
Kurt apenas contemplava, ardendo em vontade de apertar contra si aquele corpo nu. Só lembrou de tirar sua roupa quando a viu se aproximando.
- Eu tiro, Kurt. Eu tiro.

Ela o deitou na cama, lentamente, fitando seus límpidos olhos verdes nos azuis e sedentos dele. Sorria como uma menina, enquanto levantava sua blusa, tirava seu cinto e calça...
Dominou-o, deitando-se sobre ele - os dois cobertos apenas pela luz da lua que entrava pela fresta da janela. Seu membro sobre a junção de suas coxas, suas mãos apertando sua cintura. Caterine tocava seu corpo, arrepiado. Beijava sua pele: cada tatuagem, cada marca de seus anos. Kurt gemia com o pequeno movimento que deslocava suas pernas, com o transpassar de suas unhas em sua pele.
Seu beijo era molhado e doce, como sempre. Mas agora sedento. Parecia não querer deixá-lo sair ao segurar sua cabeça com as duas mãos. Kurt permitiu-se ser dominado por aquele ser de luz.

E foi surpreendido com uma dor no pescoço. Seu grito não se prolongou: sentia a dor de dentes afiados entrando em seu pescoço, furando e queimando sua pele. Mas ao mesmo tempo sentia seu fluido saindo de si e deixando-o quase imóvel. A cada pulsar daquela mordida, sentia um prazer que nunca pensara sentir antes! Seu corpo todo tremia de prazer, como num orgasmo constante. Não estava tão velho, mas os anos deixam marcas: marcas que não haviam ali, com o seu membro pulsando tão forte e vivo como há anos não sentia. Entendera, de fato, o porquê de prendê-lo tão firmemente: queria sugar sua paixão até o máximo que o desejo poderia dá-los.


Kurt conseguiu força para levantá-la sobre ela e entrar em suas pernas. Ela gemia enquanto tirava suas presas de seu pescoço e lambia-o. Caty cortou seus lábios e o beijou. Kurt entendera o recado: beijou-a, sugou-a, apertou-a. O gosto adocicado se misturava ao prazer espalhado por todo o corpo. Ela cortava-se no pescoço, seios, entre as pernas,... Sentia seu poder vindo a ele. Kurt sugava e Caty gritava de modo que parecia nunca ter sentido tal prazer.
- EU TE AMO! - Ela dizia, chorando.
Moviam-se, como numa dança igual, entrando, trocando sangue. Enquanto passavam-se as horas sem perceber e a noite ia embora.
Caterine estava tão exausta que dormiu quando o sol se apontava alto. Era tempo de descanso para ela, uma Arcadiana. Kurt apenas amparou-a em seus braços, observando seu sono. Não queria que ninguém dissesse a ela que, por ser vampira, não era divina. Era seu anjo, seu bálsamo, sua salvação.
- Eu te amo. Deus, como eu te amo... - Disse Kurt, cobrindo-a sobre ele.

San Quentin, 13 de maio de 2038.

"All hope is gone?"

San Quentin está sob nova direção. Não duvido que o velho McGullian tenha saído daqui por desviar verba pro bolso dele e pras putas que ele leva pra sala dele. Mas quem se importa? Se duvidar, o novo diretor será tão ruim quanto ele. No final das contas, vou continuar sendo comido pelo Rick pelos meus próximos dez anos aqui.

Agora percebi: já são dez anos. Dez malditos anos sendo um lixo, um pária, sendo um esquecido.
Se esses muros pudessem falar, gritariam de horror. Pelos muitos que entram, pelos poucos que saem,... A dor de cada um se soma aos gritos de todos e faz desse lugar um mausoléu de homens vivos. Mortos pro mundo, vivos só dentro das calças e nos olhos cheios de sangue.
Minha dor é imensa, mas sei que não é a única. Nem posso imaginar o Corredor da Morte, a "Ala Proibida", o desespero. Me pergunto o porquê de tanto ódio, se foi o próprio sistema que os criou; e os isola pra não ouvir seus clamores de arrependimento.
Isso nenhum novo diretor vai mudar. O sistema engole tudo e ninguém consegue fugir dele, dentro ou fora dessas grades.

Ontem, enquanto o Rick me comia (e eu rezava), ouvi um cara gritando, chamando um guarda, indignado com o que estava acontecendo na cela ao lado. Deve ser novo por aqui... Todo mundo sabe que os nazistas me aturam porque sou mulherzinha do Rick; e, por consequência, negros, latinos e italianos me odeiam. E TODO MUNDO SABE QUE NINGUÉM SE IMPORTA. Não há saída desse inferno, a não ser a morte ou a vaga esperança de sair um dia, antes de enlouquecer.

Vou continuar indo à Biblioteca. Já comi quase metade dos livros de lá. Não quero sair de San Quentin tão burro quanto entrei. Vou dar orgulho ao meu filho, onde quer que ele esteja.

Essa é a única esperança dos demônios presos no inferno: não se tornarem demônios completos.
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