Retardado

O prédio das meninas era bem mais bonito: colorido, cheio de flores,... Parecia até que o céu brilhava mais por lá. E só ficava a duas quadras do orfanato masculino. Talvez porque lá, segundo a cabeça do pequeno Kurt, as freiras não batiam nas mãos das meninas com réguas de madeira pesadas, nem mandavam as lindas menininhas machucarem os joelhos no milho. E pra quê elas tinham que rezar? Eram meninas! Não poderiam querer mais nada da vida! Poderiam ter tudo!


Só não tinham pais. Assim como eles.
Kurt adorava as gincanas de esportes. Era o único momento do ano em que poderiam ver as meninas de saias menores que as que usavam normalmente. E era uma das poucas vezes no ano em que as via. E mesmo assim, as freiras não permitiam muita aproximação. Tinham que ser discretos...
Corey ainda via o mundo dividido numa guerra entre meninos e meninas. Não entendia o que Kurt via: aquilo era o mais próximo que poderia chegar de Deus. A rezas obrigadas não lhe aproximavam tanto de criaturas angelicais, como elas. Kurt gostava de refletir sobre como poderiam ser os anjos: com certeza seriam iguaizinhos a elas.
- Oi? - uma voz limpa e suavezinha.


Kurt parou espantado. Nunca vira um anjo tão bonito... Demorou a responder.
- Você é retardado?
- Não...
- Que bom. Você pode me ajudar a levar essa minha caixa lá pro auditório? Tá muito pesada...
Kurt não era tão forte assim, mas quis parecer. A caixa caiu e as fitas coloridas se enrolaram nos malabares.
- Você é meio desastrado, né?
- É porque você é muito bonita...
O risinho, inocente e primitivamente dissimulado da menina quase não foi ouvido. O pobre menino, mais desconcertado do que nunca, tentava desenrolar as fitas.
- Quer que eu te ensine?
- O que?
- A brincar! Olha!
Bianca parecia uma artista de circo. Daquelas que se via na TV. Kurt não sabia fazer nada, a não ser olhar.
- Me ensina!
A apresentação era à noite. Tinha todo o dia para aprender com os malabares de sobra dela. Enquanto ela treinava, ele a imitava. Não queria apresentar nada na gincana: só queria ficar mais perto da menina-anjo. A essa altura, nem sabia mais onde estava Corey. Com certeza, recrutado nas trincheiras da guerra.
- Você é bonitinho, sabia?
E Kurt sentiu que suas bochechas estavam vermelhas; pelo risinho da menina. Como quando os outros meninos implicavam com ele, mas era diferente... Estava feliz. Mas onde estava o Corey pra mostrar pra ele o seu anjo?
Ouviu gritos da Irmã Marcella. Todos correram pro lago.
Era o pior.
- Estava expressamente proibida a ida dos meninos ao lago! - dizia uma velha Irmã correndo, quase manca.
Kurt viu ao longe a Irmã Marcella, molhada, com Corey no braço, desacordado. E gritos por todo o lado. 
- Ele morreu! Ele morreu!


Kurt não suportou o desespero. Esqueceu do seu anjo e correu pra ver o amigo. Quase chorando, viu a Irmã Marcella empurrando o seu peito e colocando ar em sua boca. Meninos e meninas juntos, ao redor, chorando, e Kurt gritando o nome do amigo.
Rápido, os gritos de dor do menino foram substituídos por pulos de alegria. O menino cuspia quase toda a água do lago, enquanto a Irmã Marcella rezava a todos os santos, agradecendo.
Kurt só chorava.
- Eu só queria ver se achava uma sereia-menino... Os meninos disseram que existe!
A gincana foi cancelada, as meninas foram levadas pra dentro, os meninos voltaram pro seu prédio.
Kurt só chorava.
À noite, quando não se tinha mais água nos olhos pra derramar, gritou, acordando a todos, em frente a cama de Corey:
- NUNCA MAIS VOU DEIXAR VOCÊ SOZINHO! NUNCA, AMIGÃO!
E o menino Corey acordou, sorrindo.
- As meninas são legais?
- QUEM FOI O MOLEQUE RETARDADO QUE ACORDOU O PRÉDIO TODO E QUE VAI APANHAR?
Ajoelhar no milho era insuportável. Mais ainda durante a noite, querendo dormir...

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